Por Alexandre Goulart. Publicado originalmente por Instituto Conexões Sustentáveis.

Tenho trabalhado com povos indígenas e comunidades tradicionais no Brasil — sobretudo na Amazônia — nos últimos 20 anos e, morando na França desde 2015, tenho acompanhado — com enorme satisfação, diga-se — a expansão e o amadurecimento de inúmeras iniciativas comunitárias relacionadas às atividades econômicas sustentáveis e à produção sustentável. Ambas são relacionadas aos modos como algumas comunidades vêm organizando seus processos de produção e comercialização de bens e serviços para ofertar uma enorme gama de produtos e, dessa forma, gerar renda, promover inclusão social, econômica e conservar recursos naturais — em suma, construir uma sociedade mais justa.

Tais iniciativas possuem, na origem, diferentes recortes: são atividades relacionadas à agricultura familiar, à agroecologia, à produção orgânica, ao extrativismo vegetal, ao artesanato, ao bem-estar animal, à sociobiodiversidade, ao empreendedorismo comunitário, etc. Em seus portfólios encontramos artesanato, frutas, cafés e açúcares, óleos e castanhas, temperos, entre outros produtos.

Por trás dessas iniciativas há uma imensa rede de pessoas, comunidades e organizações com muitos desafios em comum. Por um lado, a necessidade de fazer frente a padrões insustentáveis de produção e uso da terra, geralmente associados à pecuária extensiva, à monocultura de grãos, às commodities e à mineração, dentre outros. Por outro lado, é preciso garantir a melhoria constante de práticas de gestão administrativa, financeira e contábil; tomar crédito; adquirir insumos de produção (máquinas e equipamentos); formar pessoal; promover inovação técnica; criar novos produtos e, como se não bastasse todo este esforço, acessar mercados — convencionais ou novos, privados ou institucionais, diferenciados, enfim –, que paguem um preço justo pelo que foi produzido. Percepção [correta] de que o capital humano, social e ecológico investido deve ser remunerado de modo condizente.

Nesse contexto, o tema do acesso aos mercados merece especial atenção. “Mercado” é um dos conceitos mais polissêmicos (com múltiplos significados) e, portanto, dos mais elásticos que as sociedades já criaram. Na sua acepção mais rudimentar, designa-se como o local em que agentes econômicos procedem à troca de bens e/ou serviços por uma unidade monetária e/ou por outros bens.

Mercados estão sempre associados ao “outro lado” da operação de produção e comercialização. O objetivo de lidar com ele é “vender o seu peixe” e, se possível, bem. Entretanto, insuficiências de informações (assimetrias) podem desencadear um mau negócio, seja por uma parceria infeliz, preço injusto, exploração dos produtores, entre outros. Neste sentido, enfrentar o mercado exigiria bons produtos, parcerias estratégicas, contratos transparentes e preço justo, de forma a fechar o circuito — idealmente — com produtores justamente remunerados e consumidores conscientemente satisfeitos.

O tema do comércio justo, como expressão possível de um mercado diferenciado, surge nesse debate sobre mercados como modelo ideal de sistema, no qual o consumidor está disposto a pagar mais ou mesmo privilegiar o consumo de itens devido a sua procedência, pagando um preço justo por aquilo que foi produzido e/ou ofertado.

Teoricamente, “os preços obtidos nesse tipo de mercado são, em geral, mais elevados e este representa uma vantagem competitiva para os produtores” (PDPI, 2010) (1). Para nos aprofundar nos pressupostos e consequências dessa hipótese geral, nos propomos a, neste artigo (e em outros que seguirão), analisar o conceito de Comércio Justo, sua origem, histórico e desdobramentos conceituais e práticos, de forma a subsidiar organizações de produtores e seus parceiros com elementos que permitam, a um só tempo, aperfeiçoar seus planos de negócio e orientar a tomada der decisões coerentes com os planos de vida das comunidades que representam.

Para tanto, pretendo recorrer à minha trajetória pessoal e profissional recente. Explico-me: o tema chega a mim por acidente de percurso. Residindo na França, me vi frente à necessidade de sobreviver e me adaptar em terra estrangeira buscando associar minhas escolhas, na medida do possível, ao percurso profissional que marcou minha história até então: trabalhar com povos indígenas e comunidades tradicionais, especialmente na Amazônia.

Dentre as várias possibilidades de imersão, uma me pareceu promissora: conhecer os atores e as redes ligadas à temática do Comércio Justo, de forma a aproximar empreendimentos comunitários no Brasil e mercados com orientação ética, buscando, além da comercialização de bens e serviços, a circulação de conhecimento, savoir faire, cores e sabores associados aos terroirbrasileiros. Esse tema, ademais, me permitiria compreender a transição cidadã e ecológica — conjunto de conceitos que, aqui na Europa, sintetizam a busca por novos paradigmas de pensamento e ação, bem como de modelos de desenvolvimento — de forma a agir com um olhar sobre a Amazônia e um pé na Europa, na busca de respostas para um planeta com crescentes sinais de esgotamento. Em suma, procurar minha “tribo” para travar o bom combate.

Comércio Justo: um movimento em expansão

O Comércio Justo hoje é um verdadeiro movimento global. Porém, antes de se constituir numa comunidade heterogênea, complexa e multiforme — estimativas modestas apontam algo em torno de 1 milhão de produtores e trabalhadores reunidos em mais de 5.000 organizações de base, em mais de 100 países do Sul — o comércio justo se iniciou a partir de um pequeno conjunto de iniciativas pontuais e localizadas, em meados dos anos 40, 50 e 60.

Dentre os eventos e iniciativas comumente citados pela literatura, figuram o Ten Thousand Villages (ou Self Help Crafts), nos Estados Unidos, concebido para a compra de bordados de Porto Rico, em meados de 1946. Ainda nesse país, a primeira loja formalmente denominada de “Fair Trade” é constituída para a venda destes e de outros produtos em 1958.

Na Europa, a pioneira Oxfam UK — cujo nome associa esforços da comunidade da Universidade de Oxford em aliviar a fome em países do Sul em 1942 — iniciou, nos idos de 50, a venda de artesanato produzido por refugiados chineses nas lojas da rede, criando, em 1964, a primeira organização orientada para atuar em torno da temática do comércio justo.

Ao longo das décadas seguintes, inúmeras iniciativas paralelas começam a ocupar espaço em diversos países, a partir de pequenas lojas: World Shops, Third World Shops ou Fair Trade Shops, todas com o objetivo de estabelecer pontos de venda para contactar diretamente produtores do sul, estabelecer parcerias e canais de comercialização mais transparentes e pagar preços mais justos. Ademais, muitas das iniciativas, levadas a cabo por grupos religiosos e organizações sem fins lucrativos, trabalhando com suas contrapartes em países do sul, buscavam realizar campanhas de sensibilização e de chamamento à opinião pública para questões socioeconômicas e ambientais importantes.

Entre os anos 60 e 80, essas primeiras lojas foram, pouco a pouco, se expandindo em pequenas e médias redes e representam hoje um circuito importante para a dinâmica do comércio justo. Destacamos: a Fair Trade Original, rede e marca holandesa (1967), que realizou a importação do primeiro café justamente comercializado junto a cooperativas de pequenos produtores na Guatemala; a Artisans du Monde (1973), rede francesa pioneira no estabelecimento de parcerias com organizações de produtores, cuja origem remonta à compra de produtos artesanais de produtores de Bangladesh, na sequência de episódios meteorológicos que arrasaram a agricultura naquele país no início dos anos 70, e que conta hoje com cerca de 150 lojas espalhadas pelo país; a Altromercato (1988), rede italiana sustentada por 109 sócios e 260 lojas. Outros exemplos e iniciativas similares podem ser observados na Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Espanha, Portugal, Polônia, entre outros países.

Finalmente, no âmbito dos debates em torno de modelos de comércio e desenvolvimento, países em desenvolvimento começam a se articular em fóruns e encontros mundiais, apresentando demandas associadas à mudança no modelo de comércio internacional. Como destaque, a segunda reunião da Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), ocorrida em Nova Délhi em 1968, divulga a mensagem “Trade, Not Aid” (Comércio, Não Ajuda), como epítome de um paradigma de comércio internacional menos desigual e mais equilibrado que iria pautar as discussões em uma dimensão mais global.

Organizações de comércio justo e certificação comércio justo

Se na origem o comércio justo era praticado por pequenas e médias redes que acreditavam na justeza de sua prática comercial como ethos, a partir dos anos 80 e 90, a prática começou a ganhar cada vez mais terreno no mainstream dos mercados (redes de magazines e supermercados), bem como junto a consumidores não necessariamente habituados à prática da compra consciente.

Para atender à demanda crescente, uma ONG holandesa criou, em meados de 1988, o primeiro selo para certificar produtos Fair Trade, surgindo aí a iniciativa Max Havelaar, cujo princípio era, basicamente, o respeito a um conjunto de critérios pré-definidos a indicar que o produto adquirido — no caso o café — fosse Fair Trade (esse produto já contava no ano seguinte com uma margem de mercado de 3%!). A organização Fairtrade Labelling Organization (FLO) é criada em 1997 para dar sustentação ao selo, e em seguida surge o organismo independente FLO-CERT, encarregado de conferir independência ao processo de certificação, num contexto de crescente demanda pelos segmentos mainstream, responsáveis por dois terços das operações de Fairtrade.

Nos anos seguintes, iniciativas similares passam a existir. Por volta de 2004, a International Fair Trade Association (IFAT) — rede de organizações de produtores e compradores do comércio justo — desenvolve um sistema de monitoramento que difere do anterior no sentido de não certificar produtos, mas organizações, direcionando seus esforços para fortalecer uma ampla rede de pequenas associações e organizações espalhadas pelo mundo, engajadas na construção de um sistema de garantia restrito, mas de participação mais horizontal, ou seja, sem auditagem externa.

Em 2009, a IFAT altera seu nome e estatuto para World Fair Trade Organization (WFTO), em uma Assembléia Geral realizada em Katmandu, e, em 2013 (em assembleia realizada no Rio de Janeiro), lança seu Sistema de Garantia associado a um selo, cujos destinatários (Membros Garantidos) devem passar pelo seguinte processo: inscrição, autoavaliação, visita de pares, auditoria de monitoramento e Trade Accountability Watch (os dois últimos, se necessário). Além disso a WFTO, rede com mais de 400 organizações, opera em torno de um sistema de critérios pautado pelos 10 Princípios de Fair Trade (benchmarking do sistema Fairtrade internacional), além de convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Finalmente, nos anos 2000, dois movimentos se operam: a criação dos movimentos World Fair Trade Day, congregando milhares de eventos realizados no segundo sábado de maio e Fair Trade Towns, agrupando 2.135 cidades que se engajam no respeito e visibilidade junto ao comércio justo. Nesse período, uma importante ferramenta é criada, agrupando FLO (atual Fairtrade International), WFTO, além da Network of European World Shops (NEWS!) — rede com mais de 3 mil world shops europeias — e da European Fair Trade Association (EFTA) — associação que agrupa as 11 maiores centrais de compra européias. Esta ferramenta, denominada FINE, constitui-se pela implementação de um escritório de advocacia em Bruxelas com foco em influenciar os policy-makers europeus (lembrando que o termo Comércio Justo, embora conste de inúmeros pronunciamentos oficiais no nível europeu, não é reconhecido publicamente como tal, como é o caso, para efeito de comparação, de agricultura orgânica e seu sistema de certificação correlato).

Em resumo, o aspecto fundamental a destacar nesta primeira abordagem é singelo, mas necessário: Comércio Justo não é um termo abstrato, com uma ou outra definição que se constrói entre quatro paredes, mas um movimento em expansão ou uma construção histórica. Para compreendê-lo melhor, realizaremos uma leitura em camadas que abarque ao menos três aspectos: as organizações de produtores e compradores e as cadeias de produtos envolvidas; os sistemas de garantia (selos) utilizados e, finalmente, os sistemas de financiamento e de suporte técnico à disposição. Esses e outros assuntos serão tratados nos próximos artigos.

Citações

(1) PDPI (2010). Atividades econômicas sustentáveis: os desafios da comercialização de produtos indígenas. Inglês de Souza, Cássio. Brasilia, Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas/MMA, GTZ.

*Artigo escrito pelo economista, antropólogo, associado World Fair Trade Organization (WFTO) e membro da comunidade Conexsus, Alexandre Goulart. Alexandre é Mestre em Desenvolvimento Econômico, Território e Meio Ambiente (Instituto de Economia — UNICAMP). Trabalha com povos indígenas e populações tradicionais, desde 1994, sobretudo na Amazônia. Reside atualmente na França, onde atua em movimentos de transição cidadã e ecológica, especialmente junto ao comércio justo.