Por Maure Pessanha *. Originalmente publicado pelo blog da Artemisia.
A mobilidade tem forte relação com o direito de ir e vir, está associada a autonomia, acesso a serviços públicos e qualidade de vida — condições básicas para o pleno desenvolvimento das pessoas. Os obstáculos financeiros, logísticos e de segurança demandam um novo enfoque para enfrentar os desafios propostos pela temática. Devemos mudar o paradigma e substituir o debate sobre transporte e trânsito para uma abordagem mais ampla da mobilidade.
Mais do que transporte urbano, a mobilidade é um conjunto de serviços e meios de deslocamento de pessoas e bens. No Brasil, as dificuldades de acesso afetam, sobretudo, a população de baixa renda. Nas áreas periféricas, as famílias enfrentam dificuldade de deslocamento para ter acesso a escolas, hospitais, bancos e oportunidades de emprego. Na prática, a mobilidade restrita contribui para a exclusão social à medida que reforça condições de desigualdade.
Para se ter uma ideia da importância do tema, o gasto médio com o transporte está entre as maiores despesas dos brasileiros, sendo equivalente ao de alimentação: 16% do salário. Quando a análise recai para a população de menor renda e negra, o custo é ainda maior. Enquanto um empregado com renda de um salário mínimo — que realiza duas viagens de ônibus por dia — gasta esses 16% com o transporte, uma trabalhadora doméstica negra do Nordeste gasta 25% da renda mensal.
No detalhe, vemos que as populações mais pobres vivem em áreas onde o preço da terra e o aluguel são mais acessíveis, mas são distantes do centro, em terrenos íngremes e com risco de inundações e outros desastres naturais. São periferias desprovidas de serviços, enquanto as áreas centrais abrigam os mais privilegiados.
As distâncias física e social das grandes cidades transformam a falta de mobilidade em uma armadilha logística para os mais pobres. Entre os impactos, destaque para a oferta limitada de empregos; o aumento da disparidade de gênero — devido a riscos de violência e dificuldade de acesso ao transporte –; a piora nas condições de vida por conta dos deslocamentos diários; o incremento de exclusão e marginalização social; a redução das formas de interação entre as classes sociais; e a ampliação de violência e insegurança.
Vejo nos negócios de impacto social uma forma para que sejam dadas soluções inovadoras a alguns dos grandes desafios quando o tema é mobilidade. Destaco o estudo setorial apoiado pelo Ford Fund — a Tese de Impacto Social em Mobilidade — que lista as oportunidades para negócios de impacto social. Reúne, ainda, os desafios enfrentados pela população de baixa renda no Brasil relacionados à mobilidade e destaca tendências globais associadas à locomoção.
A mobilidade é um tema transversal, pois a sua falta limita as pessoas a desenvolverem as próprias capacidades, a exercerem direitos e a acessarem oportunidades — o que agrava os níveis de pobreza e exclusão. Com 112, 4 milhões de pessoas que vivem com R$ 22 diários, 60% da população brasileira, as ações que respondem ao desafio da mobilidade podem melhorar a vida das pessoas.
“As distâncias física e social das grandes cidades transformam a falta de mobilidade em uma armadilha logística para os mais pobres”
De maneira geral, o mapeamento detectou que as principais oportunidades de empreender no tema são por meio de soluções eficazes e simples na resolução do problema; confiáveis; acessíveis e adequadas à linguagem, realidade e necessidade do usuário. Detalho, a seguir, as sete oportunidades detectadas pelo mapeamento.
Possibilitar o acesso a serviços básicos como saúde, cultura e educação ao levar essas soluções para comunidades periféricas, reduzindo distâncias ou facilitando o deslocamento da população a hospitais, escolas. Entre os exemplos, espaços móveis que permitam o atendimento médico em regiões remotas; e soluções que ampliem a segurança no deslocamento de estudantes aos locais de ensino.
2. Ampliação da disponibilidade e compartilhamento
Essa oportunidade fala sobre a oferta de modais de transporte ou serviços de compartilhamento a um custo acessível, que não estão disponíveis em determinada região. Como exemplos, serviços de transporte sob demanda em áreas de risco; novos meios de transporte adequados às necessidades de moradores de áreas de favelas e periferias; soluções que permitam o compartilhamento de transporte para deslocamentos diários; carros e bicicletas a preços acessíveis.
3. Acesso a bens de consumo e mercado
Possibilitar o acesso a bens de consumo em regiões que não são atendidas e oferecer acesso ao mercado a pequenos produtores e microempreendedores. Estão nesse contexto serviços de entrega em áreas de risco não cobertas pelos Correios; e serviços de drones para entrega em áreas de risco ou de difícil acesso.
Otimizar o deslocamento individual ou público, permitindo redução de custos e tempo nos deslocamentos diários. Estão nesse contexto soluções de georreferenciamento e big data para reduzir trajetos recorrentes; gestão de rotas para transportes escolares públicos; soluções que reduzam o tempo e o custo do deslocamento diário; e soluções que aproveitem deslocamentos que já são feitos para outras finalidades.
“Uma nova geração de empreendedores pode contribuir para uma cidade mais democrática. É possível combater a segregação espacial a partir de uma nova lógica econômica”
Tornar espaços e modais adaptados para gerar autonomia ao público com mobilidade reduzida — cadeirantes, idosos, pessoas com deficiência visual. Entram soluções que promovam mobilidade a pessoas com dificuldade de locomoção; equipamentos que deem mais autonomia para cadeirantes; serviços de transporte adaptados para cadeirantes; e plataformas e sistemas de georreferenciamento.
A sexta oportunidade conversa com instrumentos para possibilitar maior segurança nos deslocamentos em diferentes modais, melhorando a iluminação pública e reduzindo o risco de acidentes, mortes e assédio. Soluções que tornem o transporte ativo mais seguro; aplicativos ou wearables que aumentem a segurança e a autonomia; soluções que aumentem a segurança de profissionais que utilizam o transporte como forma de renda.
7. Mobilidade para cidades mais humanas
Oferecer à população e aos gestores públicos informações sobre aspectos da cidade que possam interferir na mobilidade e criar espaço para os cidadãos apresentarem as próprias demandas são tópicos da oportunidade 7. Podemos destacar plataformas de apoio à gestão pública com participação popular e soluções que ofereçam informações relevantes para a população decidir a melhor forma de deslocamento.
O direito à cidade e ao exercício da cidadania estão intrinsecamente ligados à mobilidade. Acredito que uma nova geração de empreendedores pode contribuir para uma cidade mais democrática, que traga o cidadão para o centro da questão. É possível combater a segregação espacial, em especial dos mais pobres, a partir de uma nova lógica econômica.
* Maure Pessanha é coempreendedora e diretora-executiva da Artemisia, organização pioneira no fomento e na disseminação de negócios de impacto social no Brasil. Artigo publicado originalmente no Blog do Empreendedor do Estadão PME.