Do ICE
Sem propósito, nenhuma empresa, seja pública ou privada, conseguirá atingir seu potencial completo — e quem não enxerga por essa perspectiva corre um grande risco de ficar à deriva. Essa foi uma das sentenças proferidas por Larry Fink no começo deste ano, na sua tradicional carta aos líderes das principais companhias do mundo. O CEO da BlackRock, líder global em gerenciamento de investimentos, foi taxativo: empresas que não começarem a se questionar sobre seu impacto social estarão arriscando ficar para trás e sair do campo de interesse dos gestores de ativos mundiais.
No último Fórum de Finanças Sociais e Negócios de Impacto, realizado há pouco mais de um mês em São Paulo, a carta foi relembrada diversas vezes durante os painéis do track de grandes empresas — mais como uma transição de mindset que já está acontecendo e menos como uma profecia futurista.
Embora a preocupação socioambiental já seja pauta recorrente há um tempo considerável — a exemplo da bandeira da sustentabilidade alçada na década de 1990 — a cobrança efetiva para que as empresas olhem para esse cenário de forma consistente e comprometida ainda é muito recente, de acordo com a economista Graziella Comini, atualmente representante da Social Enterprise Knowledge Network e professora da FEA/ USP.
Um bom exemplo nessa direção é o trabalho conjunto entre a Coca-Cola e a startup Agrosmart. A Agrosmart, responsável por criar um sistema que dá informações diárias sobre a umidade do solo, possibilitando reduzir em até 60% o consumo de água na irrigação das plantações e obter um crescimento de mais de 10% na produtividade, mesmo com a seca, foi escolhida pela Coca-Cola para o atendimento a alguns pequenos e médios agricultores da cadeia de suprimentos da empresa.
As cooperativas parceiras do estado do Espírito Santo, que fornecem frutas para a marca Del Valle, estavam com problemas na produção devido à falta de chuvas na região. A parceria com a Agrosmart ajudou as cooperativas a reduzirem o uso de água em 30%, e a Coca-Cola pode continuar comprando dos mesmos parceiros.
Cartas na mesa
Com a transparência dos tempos digitais — em que a sociedade passa a fiscalizar também a coerência entre discurso e prática dos empreendimentos —, parece cada vez mais adequado e necessário que grandes empresas dialoguem com os negócios de impacto e que desenvolvam um interesse genuíno no progresso social e ambiental.
“Não existe uma empresa que não gere impacto. Precisamos olhar para esse impacto e entender como refleti-lo dentro de um modelo de negócio. Nem tudo que é importante é monetizável. Há um aviso claro em curso: um negócio rentável que deixa impacto negativo não será um negócio rentável por muito tempo”, diz Denise Hills, superintendente de Sustentabilidade e Negócios Inclusivos do Itaú Unibanco.
E, por mais que essa mentalidade possa ter como consequência uma vantagem competitiva, essa matemática deve ser feita com bastante cuidado e responsabilidade, aponta Vivian Muniz, diretora de Inovação da PwC: “Se a sua empresa é incoerente no que mostra e no que, efetivamente, faz, há um risco de as pessoas não comprarem sua ideia, de não quererem endossar uma marca que tem seu foco única e exclusivamente em extrair algo da sociedade, mas não oferecer nada em troca”.
Para que essa mudança de mindset aconteça de forma concreta, Graziella Comini alerta que não podemos ser míopes ao acreditar que é possível transformar, em totalidade, grandes corporações em negócios de impacto e finanças sociais — pelo menos no cenário atual. Mais interessante seria, segundo ela, estourarmos as bolhas e apostarmos nos diálogos com o ecossistema que já atua nessas esferas.
Um olhar atento para as interfaces
Os campos de interação possíveis entre empreendimentos e negócios de impacto são inúmeros. No manual Oportunidades para Grandes Empresas: Repensando a forma de fazer negócio e resolver problemas sociais, lançado durante o Fórum de Finanças Sociais e Negócios de Impacto, há uma vasta gama de conceitos, informações e possibilidades de conexão com modelos de negócios que resolvam problemas sociais.
Pablo Handl, cofundador e diretor executivo do Impact Hub São Paulo e também mediador nesta edição do Fórum, trouxe à discussção a eficiência dos consórcios de impacto. Segundo Handl, a metodologia une atores interessados em adotar uma causa e buscar, juntos, desenvolver um programa para criar soluções para um determinado desafio mapeado: “A essência do consórcio é a sinergia e afinidade entre estes atores, para que cada um possa operar no que considera seu ativo mais importante. Cada vez mais esse modus operandi vai colocar as causas no centro das atenções e, assim, atrair mais parceiros — e uma das vantagens desse sistema é que esses atores podem mudar ao longo do tempo, já que a causa e sua consequente solução não dependem exclusivamente de um parceiro ou financiador.”
O Housing Pact, parceria entre Impact Hub, InterCement e Basf, é um exemplo dessa metodologia. Com a intenção de apresentar soluções para o desafio do mercado de moradia inadequada na baixa renda, os atores se uniram e criaram um programa disposto a atuar ativamente neste cenário. Hoje, já são três projetos-piloto, na Argentina, em Moçambique e no Brasil — aqui, com a assinatura do pacto pela moradia de qualidade e com investimento no programa Vivenda, a que desenvolve soluções completas em reformas habitacionais de forma rápida e não burocrática.
Da ponte para cá: como conectar?
Iniciativas que expandem o olhar para além dos grandes centros ganham cada vez mais espaço. Mas Fernanda Ribeiro, fundadora da Associação Afrobusiness Brasil e cofundadora da Conta Black, lança luz a uma outra questão urgente: de que forma é possível conectar as periferias, quem está da ponte para lá, com os grandes centros?
Segundo Fernanda, esses empreendedores têm dois perfis, mas ambos empreendem por necessidade: ou porque não conseguiram ascender na carreira ou, ainda pior, porque não conseguiram se inserir no mercado de trabalho: “Desemprego no Brasil, hoje, tem cor e classe social”. Por isso, além de ser uma rede de networking entre empreendedoras e empreendedores negros, o AfroBusiness também se conecta a grandes empresas de diversas formas — trocas e mentorias entre funcionários, aceleração de negócios e prestação de serviços são algumas delas. Empresas como Facebook e a cadeia de hotéis Ibis estão entre os parceiros da iniciativa que gera trabalho, renda e ainda ajuda a modificar o entorno em que está inserida. “É uma relação ganha-ganha, em que furamos três bolhas ao mesmo tempo: a nossa, como associação, a de empreendedoras negras/ empreendedores negros e a de grandes empresas”.
O próximo paradigma a ser quebrado
Para que o compromisso seja sustentável em longo prazo, é preciso que grandes empresas passem a olhar para as finanças sociais e para os negócios de impacto não como assunto de uma área específica dentro da corporação — sob pena, assim, de estar fadado a virar algo meramente secundário —, mas que tragam a questão para o seu core business, trabalhando a temática de forma estratégica. Nesse sentido, é necessário que as altas lideranças estejam comprometidas e envolvidas, garantindo que tal mentalidade não seja fragmentada. A questão precisa ser discutida de forma multidisciplinar, e não setorial.
“Alinhamento com o negócio é a coisa mais importante para conseguir fazer isso de um jeito rápido. Colocar o assunto no dia a dia dos executivos da empresa, olhar para dentro e ver o que tem dentro do seu negócio que precisa ser resolvido. É preciso coragem para enfrentar aquilo em que seu negócio pode estar, de fato, gerando impactos negativos. É ali que você pode fazer a diferença mais rapidamente: de dentro para fora. Entender seu papel, seu produto, aquilo que você sabe fazer, e como vai se dar a sua contribuição”, avalia André Schaeffer, vice-presidente de Suporte aos Negócios da InterCement Brasilxo.
Uma mirada para o futuro
A preocupação com o futuro que estamos construindo, a partir do agora, foi tema recorrente durante os painéis que abordaram a aproximação das empresas e dos negócios de impacto ao longo do fórum. Entre os caminhos possíveis, a importância das empresas se engajarem com acionistas e outros stakeholders para discussões de longo prazo despontou como urgente, para empresas que quiserem continuar gerando valor para seus acionistas, funcionários e para a sociedade.
O caminho, de acordo com Paulo Durval Branco, mestre em administração e vice- coordenador do Centro de Estudos em Sustentabilidade (GVces) da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP), está dado. O próximo passo seria a abertura das portas para que a inovação social da qual tanto se fala entre e impregne todos os campos, nas diversas áreas empresariais: “Temos adotado novas ideias com muita facilidade. Fomos da responsabilidade social para a economia circular. Agora, estamos falando de negócios de impacto. Mesmo assim, ainda temos dificuldades em abrir mão de velhas ideias. Precisamos apostar em quatro steps para essa mudança: transformação dos modelos mentais, ferramentas que promovam essa ruptura, recursos financeiros que apostem nessa transição e mudanças fundamentais no que tange regulação e .governança. ”
Dessa forma, as inovações permitirão que negócios seguros e justos floresçam. O debate não é para que grandes empresas apenas avaliem seus impactos, mas para que, a partir desse diagnóstico, construam pontes com o ecossistema de negócios de impacto, buscando, em conjunto, solucionar problemas sociais e ambientais. oO convite está lançado: há vida — e muita — para além dos lucros.
Texto de Gabrielle Estevans para Fórum de Finanças Sociais e Negócios de Impacto.